Direito Humano à alimentação adequada e a reforma trabalhista: indivisibilidade entre o viver, trabalhar e alimentar

Direito Humano à alimentação adequada e a reforma trabalhista: notas sobre a indivisibilidade entre o viver, trabalhar e alimentar

 Leonardo Corrêa[1]

Julia Carla[2]

Desde maio de 2016, o Governo Federal adotou uma política econômica de austeridade estruturada, basicamente, na aprovação de um novo regime fiscal e na precarização das relações de trabalho. Nessa perspectiva foi aprovada em 14 de julho de 2017, a Lei 13.467 que modificou mais de 100 pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A denominada “reforma trabalhista”, teve como principal fonte motivadora, segundo seus apoiadores, o crescimento da economia nacional pela “suposta” flexibilização das regras norteadoras da relação de trabalho e emprego.

O fato é que a reforma trabalhista poderá atingir em cheio a saúde e segurança alimentar do empregado, na medida em que altera substancialmente a vida e a rotina no ambiente de trabalho, em especial no que tange aos intervalos para repouso e alimentação e àqueles identificados no deslocamento da residência ao local de prestação dos serviços e vice-versa.

Primeiramente é importante analisar a legislação ora revogada, a começar pelo intervalo intrajornada antes concedido por no mínimo 1 hora, para as jornadas superiores a 6 horas. Tal período, destinado ao repouso e à alimentação do trabalhador, nos termos da Súmula 437 do Tribunal Superior do Trabalho, não poderia ser extirpado ou reduzido, sob pena de pagamento total do período suprimido com acréscimo de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho. O objetivo da norma era garantir as medidas de higiene, saúde e segurança do trabalho, eis que o tempo destinado à alimentação e ao repouso se traduz em natureza de ordem pública indisponível e não transacionável.

Como segundo ponto, o intervalo denominado “horas in itinere”, que visava proteger o tempo em que o trabalhador permanecia à disposição de seu empregador. O artigo 58, §2º da CLT , era claro ao afirmar que o período despendido pelo empregado até o local de prestação dos serviços, bem como para seu retorno à residência, seria computado na jornada de trabalho quando o trabalho se desse em local de difícil acesso ou não servido por transporte coletivo e com condução fornecida pelo empregador. Aqui, fácil perceber que a intenção do legislador caminhava no sentido de preservação do tempo do empregado, dando-lhe uma contraprestação pela perda do período útil desperdiçado no deslocamento para o trabalho.

Com a nova regra celetizada, vê-se um prejuízo para o trabalhador, que teve usurpado seu direito e não mais receberá qualquer quantia em razão do tempo de deslocamento, e que poderá ter seu intervalo reduzido através de acordo ou negociação coletiva, além de não mais perceber remuneração pela hora integral nos casos de supressão parcial do período destinado ao repouso intrajornada.

A questão central, então, consiste em indagar como a reforma trabalhista pode se transformar em um obstáculo a concretização do direito humano à alimentação adequada?

Primeiramente deve-se registar que o ato de alimentar e o de trabalhar representam duas faces indissociáveis da reprodução da vida. Nesse sentido, a nova CLT poderá afetar profundamente a efetivação do direito humano à alimentação, uma vez que o trabalhador ou não terá o mesmo tempo para sua alimentação no curso da jornada, ou não será remunerado pelo período em que passar, no trânsito, à disposição do trabalhador.

O direito humano à alimentação adequada (DHAA) – positivado no artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 11º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), artigo 6º da Constituição da República – deve ser interpretado a partir de duas perspectivas complementares: (i) o direito de estar livre da fome/má nutrição e, ao mesmo tempo, (ii) o direito à alimentação adequada. Esta dupla dimensão representa, assim, o verdadeiro núcleo essencial do direito humano à alimentação adequada cuja principal função jurídica é fundamentar e legitimar a elaboração e monitoramento das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (SAN).

Entretanto, na medida em que a rotina laboral do trabalhador é modificada, pode-se falar em implicações diretas em sua alimentação, seja na qualidade, na quantidade ou, ainda, no tempo gasto com o preparo e cuidados alimentares.

O tempo e o espaço onde o empregado se alimenta representam importantes determinantes da saúde do trabalhador. Ao reduzir o tempo de almoço do trabalhador, o empregador promove uma importante mudança no ambiente alimentar e, consequentemente, no comportamento individual do trabalhador. O Guia Alimentar para a População Brasileira afirma que o ambiente no qual comemos é um fator que influencia diretamente a qualidade de nossa alimentação. Além disso, a nova CLT, ao deixar de remunerar o trabalhador pelo tempo de deslocamento, estar-se-á privando-o da verba necessária o acesso à alimentação adequada. Há se frisar que para se garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada, deve-se buscar remuneração digna, eis que considerável parte da renda do trabalhador médio é destinada à sua alimentação. Nesse ponto, tem-se que a possibilidade de se suprimir do empregado verba que anteriormente estava habituado a receber, reduzirá não apenas seu salário, mas principalmente seu poder de compra de alimentos.

Ainda não temos notícias da extensão das consequências de tais medidas trabalhistas, entretanto, já se pode afirmar que a nova CLT altera substancialmente o ambiente alimentar no qual está inserido o trabalhador. E, nesse passo, também as doenças crônicas não transmissíveis permanecerão sobrecarregando os equipamentos públicos, de modo a tornar precária não apenas a relação de trabalho, mas também o Sistema Único de Saúde nacional.

[1] Professor da graduação e mestrado em Direito da UFJF. Coordenador do Projeto REAJA – Rede de estudos e ações em Justiça alimentar.

[2] Pesquisadora do Projeto REAJA – Rede de estudos e ações em Justiça alimentar. Mestranda em Direito e Inovação pela Faculdade de Direito da UFJF. Advogada


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