Davi Lelis
Existem, no Brasil, dois modelos de produção no campo. A agricultura patronal e a agricultura familiar. A primeira, comumente denominada de agronegócio, é responsável, na maior parte das vezes, pela produção de exportação. A ela também, o Estado brasileiro dedica a maior parte dos investimentos financeiros, de infraestrutura e de ordem institucional. A agricultura familiar, por sua vez, é massivamente responsável pela produção para abastecimento interno. A ela o Estado brasileiro dedica um quinto dos valores destinados à agricultura patronal[1], pouca infraestrutura e alguns programas de desenvolvimento. O observador distante pode ser levado a crer que entre as duas formas produtivas, a familiar e a patronal, existe uma complementariedade. Mas, o cenário é de conflito. Ambas disputam bens finitos, recursos e terras, e o Estado tem constantemente, feito a escolha moral em favor da agricultura patronal.
No embate da intervenção estatal no setor agrícola, constata-se que as políticas públicas são levadas a efeito (ou elaboradas) em processos decisórios pautados muito mais em interesses dos formuladores de políticas públicas (técnicos e grande capital agrícola favoráveis à agricultura patronal) do que nos movimentos sociais (favoráveis à agricultura familiar). Na prática, a disputa culmina em uma norma unificadora voltada ao desenvolvimento, significado como crescimento modernizante de produção de commodities agrícolas que devem impactar positivamente a balança comercial brasileira. Vencidos, na outra ponta do processo produtivo ficam os agricultores que, em exploração predominantemente familiar, não conseguem se integrar ao mercado de alimentos. Pior, muitas vezes devem lutar para manter sua forma de existência, marginais ao processo produtivo capitalista internacional.
Exemplo expressivo do processo de capitalização do meio rural é a expansão da área cultivada de cana-de-açúcar no estado de São Paulo. Em 1996, a propriedade de agricultura familiar ocupava em média 28,3 hectares de terra. Dez anos depois, após ampliação da área de plantio da cana-de-açúcar, o estabelecimento familiar passou a ocupar uma área média de 16,5 hectares de terra. Trata-se de uma redução de 41% na área média. Em contrapartida, a área média da propriedade de agricultura patronal cresceu, no período, 16,3%[2]. Tais modificações espaciais impactaram significativamente a produção de alimentos tradicionalmente praticada pela agricultura familiar, entre eles o feijão, que neste ano, embora tenha tido aumento de produtividade, obteve significativa alta de preço. A resposta estatal ao avanço desmedido da monocultura de açúcar foi o Decreto nº. 6961 de 17 de setembro de 2009, que aprova o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar no Brasil. Excelente medida contra a monocultura, entretanto, por ser prática isolada não resolve por completo a grande concentração de terras nas mãos da agricultura patronal.
Em termos da atuação do Estado, o saldo geral é negativo para a agricultura familiar em comparação à patronal. Embora a maior parte dos estabelecimentos seja considerada familiar (84%), esses detêm apenas 24% da área agricultável do Brasil. Ainda assim, neste minifúndio, com recursos reduzidos e infraestrutura precária, a agricultura familiar é responsável por produzir parte expressiva dos alimentos presentes cotidianamente à mesa dos brasileiros.
Programas sociais como o Programa Nacional de Agricultura Familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar têm sido importantes nesse contexto, não se pode deixar de mencionar. Mas, o resultado ainda é pequeno diante da necessidade crescente de alimentos e da preocupação, quase única, em produzir uma balança comercial favorável e da preocupação, quase inexistente, em promover a segurança alimentar brasileira pautada em um sistema de produção que valorize o agricultor familiar e o comércio local.
A disputa entre a agricultura familiar e a patronal representa a escolha moral estatal[3]. Uma escolha pautada por uma economia de engenharia[4], comprometida tão somente em solucionar matematicamente os problemas que a economia manifesta e, ao final do exercício financeiro, apresentar um saldo positivo para manter calmo o mercado. Por outro lado, uma economia da moral, preocupada com questões mais caras, como as interações sociais, ambientais e econômicas; com a qualidade do alimento produzido; com os valores culturais regionais; e com a solidariedade, muitas vezes é negligenciada pelo Aparelho do Estado. Na prática, o rural brasileiro, via agricultura patronal, consiste em um grande produtor de commodities, mesmo que, precisemos com mais urgência da agricultura familiar e de sua produção de alimentos, sem a qual o nosso desenvolvimento tardio permanecerá inalcançável.
Referências:
[1] IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas Públicas: acompanhamento e análise. V. 19. Brasília: IPEA. 2011.
[2] IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas Públicas: acompanhamento e análise. V. 19. Brasília: IPEA. 2011.
[3] LELIS, Davi Augusto Santana de; COSTA, Lorena Vieira. Julgamento moral, economia e políticas públicas. Revista de Presidência. V. 18, n. 114. 2016.
[4] SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.