Direito Humano à Alimentação Adequada: uma visão crítica [1]

Pode uma concepção crítica dos direitos humanos contribuir com uma prática emancipatória do DHAA?

Ao longo do século 20, o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) foi positivado em diversos textos normativos no âmbito do Direito Internacional (art. 25 da Declaração Internacional dos Direitos Humanos; art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC; Comentário Geral (CG) nº 12 da Cúpula Mundial de Alimentação), bem como em nosso direito interno (Constituição da República, Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional, entre outros).

O DHAA é conceituado como um direito ao acesso regular, permanente e irrestrito aos alimentos seguros e saudáveis, de acordo com as tradições culturais de uma comunidade. É, portanto, consensual a ideia segundo a qual o DHAA contempla duas dimensões complementares: o direito de cada indivíduo estar livre de fome e, ao mesmo tempo, o direito de ter acesso ao alimento saudável. Em linhas gerais, é também classificado como um direito humano caracterizado pela ideia de ser um direito universal e inerente à pessoa.

A conceituação do DHAA colide frontalmente com a concretude da realidade. Atualmente, 850 milhões de pessoas passam fome no mundo. Nas Américas, 4,8 milhões morrem anualmente por doenças não transmissíveis, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Os números evidenciariam um grande abismo entre os atos normativos e a realidade de exclusão, fome e adoecimento. Nessa perspectiva, o problema do DHAA não seria um debate sobre a fundamentação, mas um caso de concretização das normas.

A questão central é que devemos questionar a pertinência dessa cisão absoluta entre fundamentação e efetivação/exigibilidade. A ausência de uma reflexão crítica sobre a fundamentação do DHAA é problemática, pois impede o questionamento sobre temas essenciais. Ao consideramos o DHAA como um direito inerente afirmamos que é um direito ligado a própria natureza humana e, como tal, um direito que não se concretiza a partir do embate político.

O ponto essencial, então, é que antes de debatermos a efetivação do DHAA devemos dar um passo atrás e discutir o paradigma (epistemológico, político e jurídico) a partir do qual a fundamentação se consolidou no século 20, ou seja, a concepção hegemônica dos Direitos Humanos, que trata tais direitos a partir do reconhecimento jurídico como ideais abstratos que se encontram além do contexto da vida que visam a regular.

Joaquin Herrera Flores, doutor em direito pela Universidade de Sevilha, na Espanha, no artigo “A (re)invenção dos Direitos humanos”, expõe que classicamente os Direitos Humanos vêm sendo concebidos, ora como essência humana justificadora do injustificável e arma para a retórica conservadora, ora como suposta proposta utópica dirigida a propiciar a vingança dos afetados sobre àqueles que lhes exerceram dominação. Entretanto, afirma o autor que quando se analisa tais projetos frente à realidade material, se verifica mais de 80% da população mundial passando por situações de miséria, exploração, marginalização e fome.

Fica claro que o discurso hegemônico dos Direitos Humanos está, antes de qualquer coisa, tomado de abstrações e desconectado das práticas sociais reais em que se incluem todos os humanos, inclusive os que são invisibilizados pela concepção hegemônica de Direitos Humanos, encontrando-se do outro lado da linha criada discursiva e ideologicamente em prol de um tipo de dominação exercida na política, no mercado, e – por que não? –  no direito.

O professor e sociólogo português Boaventura de Souza Santos, no ensaio “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, observa que esse estado produz a ausência de humanidade, resultando em subumanidade moderna, como se o desenvolvimento de uma parcela de indivíduos só fosse possível a partir da exclusão de uma parte muito maior de pessoas.

É diante desse quadro de mundo que Joaquim Herrera Flores busca construir uma nova concepção de Direitos Humanos, em que eles sejam vistos como processos de luta e, portanto, consequências provisórias do agir humano em busca das satisfações dos sujeitos que objetivam alcançar bens materiais e imateriais necessários à vida; que permitam que sejam quebradas as distâncias que se estruturam de forma que alguns indivíduos tenham acesso mais fácil aos bens materiais e imateriais que compõem uma vida digna.

Nesse cenário, são realçadas as práticas sociais como formadoras do conteúdo jurídico dos Direitos Humanos, sempre provisório e em constante modificação. Não há espaços para abstrações, universalismos enlatados e importados pela cultura hegemônica e ocidental. Há espaço somente para os sujeitos reais, com demandas e desejos reais.

Neste ponto, podemos retornar ao debate central. Em que medida uma concepção crítica dos Direitos Humanos pode contribuir para a prática emancipatória do DHAA?

A primeira grande questão consiste em compreender que, apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU), no comentário “O Direito Humano à alimentação”, pretender delimitar elementos conceituais essências, o DHAA não pode ser entendido como uma formulação estática. De outro modo, uma visão crítica constatará que o significado do DHAA é fruto das permanentes disputas políticas. Diferentes atores buscam se apropriar e, consequentemente, atribuir diferentes sentidos a ele.

Assim, a simples positivação do DHAA nos textos normativos é importante, mas não suficiente para a erradicação da fome e da democratização de uma alimentação adequada, na medida em que tais normas jurídicas são apenas um ponto de partida no qual o embate político será travado. Uma teoria crítica não deve considerar o DHAA como um conceito estático. Ao contrário, é uma noção dinâmica e fruto de lutas políticas e discursivas que visam a legitimar uma determinada apropriação política e, consequentemente, a ressignificação jurídica do que seria a “alimentação adequada”.

Em segundo lugar, o reconhecimento de uma visão crítica de DHAA depende da rejeição da narrativa jurídica da universalização do homem como sujeito do direito. O véu da universalização oculta que a luta pela efetivação do DHAA se concretiza a partir de uma multiplicidade de rostos, memórias e subjetividades. Em contraponto à universalização do homem, deve ser interpretado à luz da história das lutas concretas dos movimentos sociais, tais como o esforço pela erradicação da fome e da pobreza, a luta pela democratização da terra, a batalha pela soberania alimentar e a promoção da saúde pública.

No lugar do homem como sujeito universal, uma visão crítica de DHAA deve reconhecer a centralidade dos sujeitos coletivos como elementos fundamentais na dinâmica conflituosa das demandas relacionadas ao direito à alimentação. Daí, a relevância de reconhecer a legitimidade – discursiva e jurídica – da pluralidade das formas de produção, circulação e produção de alimentos, tal como reivindicam a Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, indígenas, quilombolas, os extrativistas (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, os castanheiros, cipozeiros, piaçabeiros), ciganos, pescadores artesanais (caiçaras, marisqueiras, pantaneiros), famílias ribeirinhas

Da mesma forma, a crítica ao universalismo constitui uma condição para a visibilidade das assimetrias de gênero, raça e classe relacionadas ao modo de reprodução do sistema alimentar hegemônico. Uma política de segurança alimentar e nutricional (SAN), fundamentada em uma visão crítica do DHAA, deve ser capaz de adotar uma perspectiva multidimensional e transversal da questão alimentar a partir do reconhecimento das demandas feministas, do movimento negro, sindical, dos trabalhadores rurais e demais minorais.

Além da universalização, a abstração constitui outra característica marcante de uma visão clássica dos Direitos Humanos. De fato, uma visão crítica dos direitos humanos deve reconhecer que a luta pela definição da noção de “alimentação adequada” é fruto de embates sociais reais.

Nesse sentido, o sentido de direito humano à alimentação adequada não é o resultado de uma definição estática da ordem jurídica, mas do produto de lutas concretas, tais como, a batalha contra a monopolização do comércio mundial de sementes, o debate acerca do avanço dos agrotóxicos, a liberalização da aquisição de terras pelos estrangeiros, a disputa dos modelos de rotulagem frontal, a guerra contra a taxação de bebidas açucaradas e o combate contra a limitação da propagada dos ultraprocessados. Em resumo, são estas lutas concretas que moldam a definição jurídica do conceito de direito humano á alimentação adequada.

A principal contribuição de uma perspectiva crítica é compreender que a fundamentação do DHAA também é um objeto em disputa na sociedade. O DHAA pode ser apropriado e utilizado como um direito emancipatório ou como um direito reacionário. A narrativa do direito à alimentação adequada pode ser compreendida como uma noção exclusivamente centrada na escolha individual na qual as determinantes sociais não são consideradas e, consequentemente, reproduzir a naturalização de sistema alimentar assimétrico e injusto.

Por outro lado, o DHAA, se compreendido como nova gramática à luz das lutas e demandas reais dos movimentos sociais, o direito humano à alimentação adequada pode proporcionar as condições teóricas e políticas para a organização de um sistema alimentar alternativo orientado pela democratização fundiária, a inclusão produtiva e a desmercantilização da comida, como consta do Guia Alimentar para a População Brasileira.

* Leonardo Correa é Doutor em Direito Público pela PUC-MG. Professor da graduação e mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador da Rede de Estudo e Ações em Justiça Alimentar (Reaja). 

* Lucas Costa Oliveira é mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador da Rede de Estudo e Ações em Justiça Alimentar (Reaja). 

* Os autores agradecem os valiosos comentários e sugestões da professora e pesquisadora Mariana Fernandes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Campus Macaé. 


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